Enquanto muitos pacientes que sofrem de diabetes tipo 1 conseguem controlar a doença com dieta, exercícios físicos e injeções de insulina, uma parcela deles, portadora do subtipo conhecido como hiperlábil, não tem a mesma possibilidade. Esses pacientes não conseguem controlar o açúcar no sangue e podem sofrer de hipoglicemia assintomática, causadora de desmaios súbitos; apresentar convulsões ou mesmo entrar em coma, o que dificulta levar uma vida normal. Devido a essas e outras condições especiais, há indicação para transplante — de pâncreas ou de ilhotas pancreáticas, que são as células do pâncreas que produzem insulina e outras substâncias importantes para o metabolismo do açúcar.
Uma tecnologia promissora vem sendo desenvolvida para tornar esses transplantes mais eficientes e seguros. Quem fala ao Estado de Minas sobre as novidades na área é Thiago Mares Guia, médico mineiro, nascido, criado e graduado em Belo Horizonte. Dos pais, João Batista e Virgínia, ambos sociólogos, Thiago herdou a preocupação com os aspectos sociais de sua profissão. Do tio, o saudoso professor Marcos Mares Guia, médico por formação, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, cientista de renome internacional, herdou o gosto pela ciência e o talento para a pesquisa. Marcos desenvolvia estudos sobre o diabetes melito, quando faleceu subitamente em 2002. Coube a Thiago retomar sua linha de investigação, que já abordava a proteção das ilhotas transplantadas.
Atualmente, ele divide seu tempo entre Belo Horizonte e São Paulo, onde conduz importante pesquisa no Núcleo de Terapia Celular e Molecular da Universidade de São Paulo (Nucel/USP), coordenado pela professora Mari Sogayar. O laboratório surgiu em 2002 com o objetivo de introduzir o programa de transplante de ilhotas no Brasil, procedimento ainda experimental, mas cuja eficácia vem se aproximando daquela do transplante do pâncreas inteiro, técnica já consagrada.
A cirurgia costuma ser feito com as chamadas ‘ilhotas nuas’, não encapsuladas. Existe há muito tempo, mas progrediu bastante nos últimos 10 anos, depois que foram desenvolvidos medicamentos imunossupressores que melhoraram seu resultado. Após o transplante, os pacientes conseguem ficar em geral cinco anos sem usar insulina. “Esse é o bônus. O ônus é trocar as injeções de insulina por medicamentos imunossupressores, que têm uma série de efeitos adversos, entre eles náusea, diarreia e o risco aumentado de infecções. Mas os pacientes com diabetes hiperlábil deixam de ter as oscilações frequentes da taxa glicêmica e a melhora na qualidade de vida é tão dramática que, dada a oportunidade, optam por trocar as injeções de insulina pelos imunossupressores. O ganho clínico é muito claro. Há uma justificativa ética e científica muito forte para a indicação do transplante de ilhotas nesses casos”, diz o pesquisador.
Segundo ele, o transplante de ilhotas está quase se equiparando, em termos de longevidade do enxerto, ao transplante do pâncreas inteiro e pode vir a se tornar uma boa alternativa para ele, que é cirurgia extensa, envolvendo uma série de riscos e possíveis complicações. “Neste, transplanta-se todo o pâncreas, um órgão abdominal que pesa em média 90 gramas. O paciente só precisa mesmo das ilhotas, que representam 2% da massa do pâncreas. O desafio é separar esses 2%, procedimento denominado isolamento de ilhotas, muito complexo e ainda artesanal”, revela.
O Nucel/USP foi pioneiro no Hemisfério Sul no transplante de ilhotas. Há grandes dificuldades, e elas começam com a obtenção de órgãos para transplante. No procedimento de isolamento das ilhotas, perde-se cerca de metade do material. Com isso, são necessários dois, às vezes três doadores por transplante. Por mais que a tecnologia para esse procedimento evolua, sempre haverá o problema de fonte. “Hoje esse transplante ainda tem uma série de imperfeições. Uma delas é o lugar onde as ilhotas são implantadas. Elas são infundidas na veia porta, caem na corrente sanguínea e, na medida em que os vasos vão se tornando capilares, ficam presas dentro do fígado. Cerca de 50% a 75% delas não sobreviverão às primeiras 48 horas.”
“O transplante se dá entre indivíduos geneticamente diferentes, então é natural que haja rejeição. O protocolo de imunossupressão, que se destina a combater a rejeição, ainda é imperfeito e seu custo é muito alto, podendo chegar a R$100 mil por ano. Não dá para evitar totalmente a resposta imunológica e os imunossupressores em si têm certa toxicidade contra as células responsáveis pela produção de insulina. Como as ilhotas entram em contato direto com o sangue, desencadeiam a reação inflamatória imediata mediada pelo sangue, muito agressiva”, explica o médico.
Microemcapsulamento
Segundo Mares Guia, muita coisa ainda deve ser melhorada. “Não há pâncreas para todos os pacientes. Pode-se pensar no uso de animais como fonte alternativa de ilhotas, mas ainda se teme o risco de transmissão de retrovírus endógenos que possam provocar doenças no ser humano. Já foram desenvolvidos testes para detectar esses retrovírus, permitindo descartar material contaminado. Esse procedimento está caminhando para ser aprovado em alguns países”, acrescenta. O xenotransplante, entre espécies diferentes, vai se tornar possível. Contudo, a questão da imunossupressão permaneceria como obstáculo.
Outro caminho promissor é o microencapsulamento das ilhotas, que não é uma ideia original do grupo, mas vem sendo aperfeiçoado no Nucel/USP e cujos resultados têm sido muito bem aceitos pela comunidade científica internacional. O microencapsulamento, explica Thiago, “consiste na utilização de substâncias biológicas especialmente projetadas para revestir a célula a ser transplantada”. “Usamos o alginato, um carboidrato extraído de algas, material muito usado na indústria de alimentos. Revestimos as ilhotas com uma solução de alginato que, submetido a procedimentos especiais, gelifica, encapsulando as células. Essa cápsula é uma membrana semipermeável, que permite a entrada e a saída de alguns materiais, de forma controlável: que saiam a insulina e outros importantes metabólitos que a ilhota produz, que entrem o oxigênio e os nutrientes necessários para a sobrevivência da ilhota, e que ela seja capaz de impedir a entrada de anticorpos ou células do sistema imunológico que possam atacar o material transplantado. Enfim, estamos tentando criar uma armadura inteligente, seletiva”, completa.
PATENTE
A contribuição original da pesquisa, que contou com a colaboração de outras duas mineiras, as biólogas Ana Carolina Campos Lisboa e Ana Lúcia Campanha, é a descoberta de substâncias que, agregadas ao alginato, compõem uma cápsula que elimina o uso de medicamentos imunossupressores e permite o uso seguro de ilhotas oriundas de outras fontes que não o pâncreas de doadores. “Além disso, essas substâncias melhoram a ilhota, mantendo-a viva por mais tempo e aperfeiçoando sua função, ou seja, ela secreta insulina de maneira mais eficiente”, diz Thiago Mares Guia. Essa novidade abre perspectivas inéditas para o transplante de ilhotas. A nova formulação é alvo de proteção intelectual: a CellProtect, empresa de biotecnologia presidida por Mares Guia, depositou seu primeiro pedido de patente no fim de 2010.
Fonte: Correio Web